Entrevista: “A dislexia também tem superpoderes”

Patrícia Teixeira de Abreu criou o blog Dislexia Day by Day para falar sobre a sua experiência enquanto mãe de uma menina com dislexia. Acredita que é “fundamental que os professores tenham formação sobre o tema e que haja também uma sensibilização das crianças”, porque a dislexia não é uma doença e as crianças com este quadro têm geralmente outras capacidades que não são valorizadas. Vamos saber mais sobre este projeto e a importância que a literacia tem para o tema.

  1. O que a motivou a criar a Dislexia Day by Day?

Sou mãe de três crianças e apercebi-me de que a Francisca, a minha filha mais nova, na altura com sete anos, tinha dificuldades em ler, trocava algumas letras e escrevia em espelho. Atribuí estas dificuldades a algumas mudanças que tinham ocorrido na nossa vida e ao facto de ser ainda muito infantil. Não sou uma mãe stressada, penso que cada um tem o seu ritmo. Não pressionei, mas mantive-me atenta e em contacto com a professora. No início do 2.° ano, as notas das avaliações intercalares agravaram a tendência. Falei novamente com a professora que sugeriu que a Francisca fosse avaliada. Depois de vários testes foi diagnosticada com Dislexia. Eu não sabia nada sobre o tema e por isso os primeiros tempos de acompanhamento da Francisca foram muito difíceis. Tínhamos um plano diário de trabalho efetuado pela terapeuta, mas senti-me imensamente sozinha perante as enormes birras ao final do dia, a aprendizagem muito lenta e o cansaço extremo. Sabia que não podia desistir por isso comecei a escrever para me automotivar.

 

  1. Qual é o propósito da Dislexia Day by Day?

Um dia mostrei os textos que escrevia às minhas filhas que me desafiaram a partilhar com outros pais o caminho que estávamos a fazer através de um blog. Ao princípio resisti imenso, mas depois pensei que existiriam milhares de pais na minha situação que provavelmente se sentiriam sozinhos e para quem as pequenas conquistas que íamos fazendo poderiam ser uma motivação para não desistirem.

 

  1. De que forma pode a Dislexia Day by Day impactar pessoas disléxicas e os seus familiares?

O blog dislexia Day by Day foi desde o início um projecto de família com o objetivo de ser um porto de abrigo para pais e professores. Acreditamos que a partilha de experiências entre todos permite que estas crianças tenham uma aprendizagem mais leve e feliz e que os pais se sintam menos sozinhos.

 

  1. Quais são os principais desafios que enfrenta enquanto mãe de uma criança com dislexia? 

No caso da Francisca, após o diagnóstico passou a ser acompanhada semanalmente pela terapeuta da fala sendo que eu tinha de assistir a todas as sessões para depois diariamente executar o plano de trabalho definido pela terapeuta em casa. Nos primeiros anos trabalhámos todos os dias: 365 dias por ano, sem interrupções. Honestamente a dificuldade era tanta que eu pensei que a Francisca não seria capaz de ler. Hoje já leu mais de 20 livros de 200 páginas. Foi muito cansativo e desafiante, mas com muito trabalho entre família, escola e terapia, a Francisca aprendeu a ler e a escrever. Estas crianças precisam de trabalhar muito mais do que as outras e isso em nada está relacionado com falta de inteligência. Simplesmente processam a informação de forma diferente e aquilo que para nós é automático (ler e escrever) para elas implica um esforço imenso.

 

  1. Que acompanhamento ‘especial’ deve ser dado a uma criança com dislexia?

É fundamental um apoio especializado, como terapeuta da fala/psicólogo, para trabalhar estratégias de aprendizagem e orientar os pais para melhor poderem acompanhar a criança. É fundamental um trabalho de equipa constante entre escola/ pais/ terapeuta.   

 

  1. Sente que as escolas e o ensino em Portugal estão preparados para acompanhar crianças com dislexia? 

Não. Infelizmente ainda há um profundo desconhecimento do tema. Estas crianças continuam a ser vistas na escola como preguiçosas, distraídas ou pouco inteligentes. Grande parte dos professores não têm formação sobre o tema, pelo que na maioria dos casos, garantir os direitos destas crianças através da aplicação de medidas de suporte à aprendizagem previstas no decreto-lei é um enorme desafio. 

 

  1. De que forma poderia ser melhorado o acompanhamento nas instituições de ensino? 

É fundamental que os professores tenham formação sobre o tema e que haja também uma sensibilização das crianças. As crianças não entendem a razão do colega do lado não fazer algo tão básico como ler. Foi por causa disso e das lágrimas da Francisca, que chegava a casa triste, que resolvemos criar um projeto gratuito para as escolas de sensibilização que foi o projeto escolas.

 

  1. O que é o Projeto Escolas?

O Projeto Escolas começou em 2021 com a distribuição gratuita às escolas de bandas desenhadas que explicam o que é a dislexia às crianças. Com a ajuda de pais, professores e terapeutas chegámos a mais de 100 escolas e mais de 30 mil crianças. Em 2022, criámos um passatempo com prémios para as escolas e em 2023 criámos um desafio para as turmas do 1.° ao 6.° ano “A turma amiga da Dislexia”- este projeto é gratuito e as três turmas vencedoras vão receber prémios para todas as crianças, professores e escola. No dia 15 e fevereiro lançamos uma nova sensibilização com materiais gratuitos para as crianças. Deixamos toda a informação aqui .

 

  1. O que gostaria que as pessoas soubessem sobre dislexia?

Que a dislexia não é uma doença, é uma alteração neurobiológica que se manifesta numa dificuldade em ler escrever e memorizar. A dislexia também tem superpoderes e estas crianças são muitas vezes muito criativas, têm uma grande capacidade de ver a “big picture” e uma grande sensibilidade e resistência à frustração. Na verdade, o facto de falharem muitas vezes treina-as a experimentarem novas estratégias constantemente. Eu costumo dizer que a Francisca é das minhas três filhas aquela que está mais preparada para a vida porque desenvolveu desde muito cedo uma capacidade de adaptação muito rápida.

 

  1. Como é que cada um de nós (enquanto comunidade) pode ajudar à sensibilização e apoio à dislexia?

Uma grande ajuda será a partilha do Projeto Escolas para que chegue ao maior número de escolas possível e para que a dislexia seja encarada de forma natural no meio escolar permitindo que professores e crianças sejam catalisadores de uma aprendizagem mais leve e feliz para todos. Agradeço a todas as empresas que têm apoiado o projeto, e este ano em especial à Missão Continente, o que tem tornado possível chegarmos cada vez mais longe!

 

Saiba mais sobre este tema no artigo Dislexia: compreender as dificuldades e necessidades de aprendizagem.